Uma onda de anseio por respeito cresceu no Brasil nas últimas semanas. Sete estados passaram a aceitar o casamento homoafetivo sem necessidade de autorização judicial: São Paulo, Ceará, Alagoas, Bahia, Piauí, Mato Grosso do Sul, Paraná. Se esqueci de algum, por favor me corrijam. Na quarta-feira (3), a cantora Daniela Mercury assumiu o relacionamento com a jornalista baiana Malu Verçosa, por meio de uma foto publicada no Instagram. "Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar", escreveu.
A cantora baiana, que se separou recentemente do empresário Marco Scabia, declarou ao portal G1: "Sou apaixonada por Malu, pelo Brasil, pelas liberdades individuais. Eu acho que conquistas a gente não pode esquecer. Não podemos andar para trás, como os 'felicianos' da vida!".
O pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, é alvo de protestos por causa de declarações consideradas racistas e homofóbicas. Apesar de afirmar não ser racista nem homofóbico, ele pretende por fim àquilo que chama de "ditadura gay" no Parlamento brasileiro. É o homem errado, no lugar errado, na hora errada.
O reconhecimento dos direitos dos homossexuais é uma medida civilizatória das mais básicas. Está atrasadíssimo no Brasil, mas será cumprido mais cedo ou mais tarde. A declaração de Daniela é mais uma contribuição no combate ao preconceito, mas o alcance dela vai além. Ao sair do armário, Daniela ajuda a melhorar a saúde das brasileiras.
Somos mais que um punhado de ossos, músculos e veias programados para durar uns 80 anos se o manual de conservação for respeitado. Para que o corpo funcione segundo a programação de fábrica, a mente precisa estar bem. Se os gays (homens ou mulheres) vivem sob o stress constante provocado pelo preconceito e pela desvalorização social, problemas de saúde não tardam a aparecer.
No mês passado, o periódico científico American Journal of Public Health publicou um estudo sobre os benefícios da legalização das uniões homossexuais para a saúde. Gays, lésbicas e bissexuais participaram da pesquisa da Escola de Medicina da Universidade de Nova York. Os pesquisadores concluíram que os casais que vivem em relações legalizadas (femininas ou masculinas) apresentam menos distúrbios psíquicos. Respeitar direitos faz bem à saúde do país.
Não me parece difícil compreender que o preconceito vivido dia após dia aumenta o risco de distúrbios psíquicos, como nervosismo, tensão, cansaço, tristeza. Esses distúrbios, por sua vez, contribuem para a gênese de dores de cabeça, de estômago e de coisa muito pior.
No caso específico das lésbicas e das bissexuais (ou, como preferem os pesquisadores, das mulheres que fazem sexo com mulheres), a situação é mais complexa. Dentro de sistema de saúde, essas mulheres são invisíveis.
Um estudo sobre o acesso dessa população a cuidados relativos à saúde sexual, publicado em 2009 no revista Cadernos de Saúde Pública, investigou a questão num grupo de trinta mulheres de classe média ou baixa com idade entre 18 e 45 anos. Dezoito haviam estudado até o ensino médio. Doze tinham ensino superior completo.
Apenas metade das entrevistadas relatou ir ao ginecologista uma vez por ano. Das trinta mulheres, sete nunca haviam realizado um exame papanicolaou em toda a vida. Cinco foram submetidas a ele apenas uma vez.
Por que isso acontece? As lésbicas ainda têm vergonha de revelar a intimidade a um ginecologista. Muitas das que procuram atendimento médico preferem não detalhar práticas sexuais. Saem dos consultórios com recomendações de uso de pílulas anticoncepcionais ou estimuladas a exigir que o parceiro masculino use camisinha.
As pacientes que preferem a transparência muitas vezes não se sentem acolhidas pelos profissionais de saúde. Em 2011, o Ministério da Saúde instituiu no SUS a chamada Política Nacional de Saúde Integral LGBT. A iniciativa é louvável. A prática deixa a desejar.
Apesar de algumas unidades de saúde do SUS usarem formulários para facilitar a abordagem de lésbicas e bissexuais, essa ainda não é regra na saúde pública. Menos ainda nos consultórios privados. As mulheres não falam. Os profissionais não perguntam.
O resultado desse pacto de silêncio é a deterioração da saúde. Um mito que precisa cair é o de que mulheres que se relacionam com outras mulheres não pegam DST. O HPV, a sífilis e, muito raramente, o HIV podem ser transmitidos na relação sexual entre mulheres.
A secreção vaginal e o sangue são veículos da transmissão. Por isso, é importante usar preservativo quando o casal for compartilhar "brinquedinhos" ou qualquer outro objeto para penetração. Ao mesmo tempo, não se deve descuidar da prevenção do câncer de mama. Nunca é demais lembrar que o risco de ter a doença é maior entre as mulheres que nunca engravidaram nem amamentaram.
Desde a publicação do estudo, em 2009, a atenção à saúde das mulheres lésbicas ou bissexuais pouco se alterou no Brasil. Essa é a percepção de Regina Facchini, uma das autoras do trabalho e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp.
"A partir das eleições de 2010, cresceu a interferência do discurso político conservador no campo dos costumes", disse Regina à coluna. "Houve uma diluição do debate sobre a saúde dessas mulheres, pelo menos no âmbito federal"
Segundo ela, a mudança necessária tende a ser lenta. "Trata-se de reconhecer que a sexualidade de todas as mulheres vai além da questão reprodutiva e pode ser diversificada", diz.
Está mais do que na hora de os profissionais se mostrarem francamente abertos - e demonstrarem isso durante as consultas de rotina. Ainda hoje muitas mulheres (hetero ou homossexuais) têm dificuldade de falar sobre sexualidade. Para muitas, o tabu não caiu. Ainda mais se algo na sexualidade é percebido por ela mesma como um desvio passível de reprovação social.
Se a função dos médicos e demais profissionais de saúde é melhorar a qualidade de vida das pessoas, o melhor que podem fazer ao atender essas mulheres é quebrar o ciclo de silêncio, medo e desconhecimento.
Desde os anos 1970, as associações científicas internacionais e brasileiras reconhecem que a homossexualidade é uma simples variação da sexualidade humana. Não é uma patologia, como se acreditava no século XIX e início do século XX.
Mulheres que fazem sexo com outras mulheres são mulheres como quaisquer outras. Elas podem ou não se reconhecer como lésbicas. Podem ou não ter práticas que envolvem penetração. Podem ou não ter sexo com homens. Podem ou não ter informações suficientes para cuidar da saúde. A única coisa que pode torná-las mais vulneráveis (no que diz respeito à saúde física ou mental) é o preconceito e o estigma.
Por tudo isso, Daniela merece aplausos. "Cada mulher que tem uma imagem pública e que apresenta outra mulher do mesmo jeito que faria com um namorado do sexo oposto ajuda outras mulheres que têm relações homossexuais a encarar seus desejos e afetos com mais naturalidade", diz Regina.
A falta de apoio dos profissionais de saúde para falar sobre orientação sexual produz nessas mulheres exclusão e violência simbólica, apesar dos programas governamentais preconizarem o contrário. Essa é a conclusão de um estudo publicado em 2011 por Rita de Cássia Valadão e Romeu Gomes na Revista de Saúde Coletiva.
No cenário de 2013 há razão para otimismo, acredita Rita. "Estamos avançando, ainda que lentamente. Ao sair do armário, uma pessoa famosa e querida como Daniela traz uma visibilidade positiva para as lésbicas e mulheres bissexuais", diz Rita, assistente social do Instituto Fernandes Figueira, da Fiocruz, no Rio .
Para isso, a formação profissional em saúde precisa melhorar. "Muitas vezes, essa questão é evitada nos cursos de formação ou subliminarmente vista como desvio", diz Romeu Gomes, pesquisador da Fiocruz. "A assistência prestada não pode se reduzir à doença. É preciso abranger as pessoas (homo, hetero ou bissexuais) e suas vivências sexuais em sua totalidade."
Celebridades não devem estimular preconceitos ou colaborar para agravar situações políticas, sociais e individuais de vulnerabilidade. O reflexo dessas atitudes no campo da saúde é notável. "A epidemia de aids deveria ter nos ensinado uma lição: os preconceitos e os estigmas são determinantes sociais da saúde, para o bem e para o mal", diz Regina, da Unicamp. "Atitudes como a de Daniela levam em conta a responsabilidade social no uso da imagem e do acesso ao público."
Saber com quem Daniela se deita é um assunto que extrapola os limites dos espaços tradicionalmente reservados às fofocas sobre a vida das celebridades. Daniela desperta uma discussão maior e presta um serviço ao país. Assim como fez Xuxa, em maio do ano passado, aorevelar ter sofrido abuso sexual na infância.
Daniela e Xuxa nada tinham a ganhar com as declarações que fizeram. A não ser, mais do mesmo: linchamento moral por parte de alguns. Respeito e admiração por parte de outros.
Estou com o segundo grupo. Acredito que atitudes como a delas trarão avanços em várias esferas e, sobretudo, no campo da saúde. Será um ganho real e possivelmente mensurável daqui a alguns anos.
A quem interessar possa, não sou lésbica. Sou casada com um homem e tenho uma filha. Sonho com o dia em que essa informação seja importante para o acompanhamento médico, mas irrelevante para a atribuição do valor de quem quer que seja.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
Fonte: Revista Época
" ser negra (o) não é questão de pigmentação, é resistência para ultrapassar a opressão"
http://fuxicodeterreiro.blogspot.com
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